Todos os anos, em maio, a cidade litorânea de Cannes, na Riviera Francesa, se transforma no epicentro do cinema mundial.
Por quase duas semanas, estrelas de Hollywood e do cinema internacional dividem espaço com cineastas autorais, jornalistas do mundo inteiro e multidões de fãs na famosa Croisette — a avenida à beira-mar que leva direto ao Palais des Festivals, onde os filmes mais aguardados da temporada são exibidos em primeira mão.
- "O Agente Secreto", filme brasileiro com Wagner Moura, fará estreia no Festival de Cinema de Cannes no domingo (18)
-
Festival de Cannes: circuito mais prestigiado do cinema mundial começa nesta terça-feira (13) -
'Sentimental Value': filme rouba cena em Cannes e é favorito à Palma de Ouro com 19 minutos de aplausos
Mais do que um desfile de celebridades ou uma vitrine de filmes aclamados, o Festival de Cannes é, há quase oito décadas, um dos eventos culturais mais influentes do mundo.
Ele pode até parecer apenas uma premiação glamourosa — e, de fato, é —, mas seu funcionamento é bem mais complexo do que a cobertura dos tapetes vermelhos costuma mostrar.
Como os filmes são selecionados? Quem decide quem ganha a Palma de Ouro? E quais são exatamente as categorias da competição?
O Festival de Cannes foi fundado oficialmente em 1946, no cenário pós-Segunda Guerra Mundial, com um objetivo claro: celebrar a liberdade artística e resistir à influência política que havia contaminado outros festivais, como o de Veneza, durante os anos do fascismo.
A ideia havia surgido ainda antes da guerra, por iniciativa do francês Jean Zay (então Ministro da Educação e Belas Artes), mas os conflitos adiariam sua estreia.
Desde então, Cannes se estabeleceu como um espaço de afirmação artística, onde obras provocadoras, inovadoras ou de forte cunho político-social encontraram visibilidade global.
Ao longo dos anos, o festival se tornou sinônimo de prestígio e consagrou diretores como Quentin Tarantino, Jane Campion, Pedro Almodóvar e Bong Joon-ho — além de ser palco de vaias históricas, aplausos de pé e debates acalorados.
Quantos filmes participam e como eles são escolhidos?
Cannes recebe milhares de inscrições todos os anos, e apenas uma fração dos filmes é selecionada para a mostra oficial.
Em 2025, por exemplo, 22 filmes integram a Competição Oficial, disputando a cobiçada Palma de Ouro.
Os critérios de seleção envolvem originalidade, relevância artística, ineditismo e, claro, a visão dos curadores do festival, comandados atualmente por Thierry Frémaux, delegado geral do evento.
Além da competição principal, o festival possui outras seções, como:
- Un Certain Regard – voltada a obras mais experimentais ou de novas vozes do cinema.
- Fora de Competição – filmes exibidos sem concorrer à Palma de Ouro.
- Sessões Especiais – homenagens, estreias e documentários.
- Cinéfondation – dedicada a curtas e médias-metragens de escolas de cinema.
- Curtas em Competição – com sua própria Palma de Ouro.
- Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica – seções paralelas independentes, mas também relevantes.
Como funciona a programação dos filmes em Cannes?
Durante o festival, os filmes não são exibidos apenas uma vez. Cada título ganha uma estreia com tapete vermelho — a famosa première — e, a partir daí, passa a integrar a programação como se fosse uma verdadeira grade de cinema.
Todos os dias, salas diferentes exibem os filmes selecionados em diversos horários, permitindo que jornalistas, jurados, convidados e o público credenciado escolham o que assistir ao longo da maratona.
É comum que um mesmo longa seja exibido em sessões matinais, vespertinas e noturnas, espalhadas por salas como o Grand Théâtre Lumière, a Debussy e outras menores no Palais e arredores.
Essa dinâmica transforma Cannes em um grande circuito cinematográfico temporário, onde as ruas respiram cinema 24 horas por dia.
Como funciona o júri?
A cada ano, um júri internacional é montado para avaliar os filmes da competição. Ele é composto por figuras relevantes do cinema — diretores, roteiristas, atores e produtores — de diferentes países.
A presidência do júri costuma ser ocupada por um nome de peso: já passaram pelo cargo artistas como Cate Blanchett, Spike Lee, Pedro Almodóvar, Greta Gerwig, e em 2025, Juliette Binoche.
Esse júri é responsável por assistir a todos os filmes da competição e deliberar sobre os prêmios.
O processo é feito com total sigilo: após as sessões, os jurados se reúnem em encontros privados, onde votam e discutem intensamente até chegarem aos vencedores.
Importante: o júri é obrigado a distribuir pelo menos sete prêmios principais:
- Palma de Ouro (melhor filme)
- Grand Prix (segundo lugar da competição)
- Prêmio do Júri
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro
- Melhor Atriz
- Melhor Ator
A Palma de Ouro só pode ser dada a um único longa — e o filme premiado não pode receber, ao mesmo tempo, outro dos prêmios principais (como direção ou roteiro). Isso evita concentrações excessivas de prêmios em um único título.
É só uma premiação?
Definitivamente, não.
Cannes é uma mistura de festival de cinema, mercado audiovisual e evento social. Paralelamente à exibição dos filmes, acontece o Marché du Film, um dos maiores mercados cinematográficos do mundo, onde distribuidores, produtores e agentes negociam estreias, coproduções e contratos internacionais.
Além disso, o festival funciona como um grande holofote para os lançamentos do segundo semestre.
Filmes premiados em Cannes ganham fôlego para chegar ao Oscar, ao BAFTA ou aos prêmios independentes — e nomes que surgem ali costumam dominar as manchetes nos meses seguintes.
Por que Cannes ainda importa?
Em um cenário cada vez mais dominado por streamings e algoritmos, Cannes continua sendo um espaço onde o cinema é visto como arte antes de produto.
Seu prestígio vem do cuidado com a curadoria, da diversidade de vozes que abriga e da força simbólica que uma Palma de Ouro ainda representa na trajetória de um filme.
A cada edição, Cannes reafirma seu papel como guardião da liberdade criativa e como vitrine para o que há de mais relevante, ousado ou surpreendente no cinema contemporâneo.