A introspecção apaixonada de 'Queer' e o medo da solidão

O longa dirigido por Luca Guadagnino entra em destaque nesta temporada de premiações com a atuação de Daniel Craig como protagonista

Publicado em 26/12/2024 às 12:11
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Lançado nos cinemas brasileiros no dia 12 de dezembro, Queer é o segundo longa do cineasta italiano Luca Guadagnino a ser exibido pela primeira vez este ano. Em um tom bastante distinto do primeiro, Challengers, com uma proposta mais enérgica e divertida, este aposta em uma atmosfera introspectiva com pinceladas de surrealismo. Com Daniel Craig no elenco, dando vida ao protagonista, o filme tem a chance de receber dois dos principais prêmios de atuação da indústria: o Globo de Ouro de Melhor Ator de Drama e o Critics Choice Awards de Melhor Ator. O intérprete também é um dos cotados para os Oscars por este papel, mas a lista oficial dos indicados só será divulgada no próximo dia 17 de janeiro.

Na trama de Queer, ambientada nos anos 1950, William Lee (Daniel Craig) é um marinheiro aposentado que vive na Cidade do México e leva uma vida boêmia, conciliando trabalhos de meio-período com seu vício em drogas e idas constantes a clubes gays. O personagem conhece e se apaixona por Eugene Allerton (Drew Starkey), um estudante distante e misterioso, que envolve intensamente o protagonista em suas oscilações de frieza e pequenos afetos.

Reprodução/Paris Filmes
Frame do filme 'Queer', dirigido por Luca Guadagnino - Reprodução/Paris Filmes

Essa premissa, que à princípio, remete o telespectador a um simples romance dramático, é baseada em um livro homônimo, com autoria de William Burroughts. À medida em que a história avança e o relacionamento unilateral de Lee e Allerton se desenvolve em complexidade, o filme mescla a realidade com cenas repletas de traços surreais e elementos alucinógenos, que surgem na tentativa de revelar a confusão presente no íntimo do protagonista, um personagem inseguro e muito carente de afeto.

Por meio da fotografia, o longa consegue transmitir com muita precisão a adoração e o apego de Lee por Allerton. Em uma das cenas do filme, o casal vai ao cinema. Enquanto o estudante presta atenção na tela, os olhos do protagonista estão sempre voltados para ele, quase em transe. Ao mesmo tempo em que o telespectador acompanha a expressão de ternura de Daniel Craig, os braços do personagem se movem, quase que saindo de seu próprio corpo, ganhando um efeito translúcido que representa não o real, mas o desejo interno de Lee e, nesse estado de sonho desperto, as mãos acariciam o rosto de Allerton. Esse tipo de abordagem se repete mais vezes ao longo do filme, uma estratégia efetiva que evoca em quem vê a sensação de ler um livro, que narra claramente os pensamentos, emoções e vontades de seus personagens, sem a necessidade de diálogos expositivos.

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Frame do filme 'Queer', dirigido por Luca Guadagnino - Reprodução/Paris Filmes

No plano de fundo deste mesmo episódio de Queer, é exibida uma cena do filme Orfeu, de 1950, dirigido por Jean Cocteau. Nela, um homem, em frente a um espelho, toca sua superfície e adentra o vidro, se tornando um com seu próprio reflexo. Este filme é inspirado no mito grego em que Orfeu desce ao Mundo dos Mortos para trazer sua esposa, Eurídice, de volta à vida. Hades concede seu desejo com uma condição: ao deixar o inferno com sua amada, ele não deveria olhar para trás. Orfeu não obedece a essa exigência, e, ao virar o rosto para conferir se Eurídice o acompanhava, perde-a para sempre. Neste paralelo, Lee é Orfeu, que se desliga do mundo e esquece seu próprio eu em prol do seu amor por Allerton.

Em meados da trama, Lee convida Allerton para uma viagem pela América do Sul. Durante esse período, a convivência dos dois é quase constante, sendo possível perceber de forma ainda mais acentuada a necessidade de afeto de um e a dualidade do outro, ora indiferente, ora conivente com os desejos do protagonista, ora reprimindo de maneira violenta sua proximidade. A jornada, no entanto, possui um propósito bem específico: Lee procura yagé, também chamada de ayahuasca, uma droga que, conforme lhe foi informado, é capaz de desenvolver telepatia entre os usuários. Em sua busca, ele é levado ao nome da Dr. Clutter, uma pesquisadora que estuda sobre as propriedades da planta e vive na Floresta Amazônica.

Lee e Allerton partem em busca da Dr. Clutter e, isolados em volta de uma cabana na floresta junto a ela e seu companheiro, experimentam a ayahuasca. O telespectador embarca nos efeitos do alucinógeno junto com os personagens, os assistindo vomitar, literalmente, seus próprios corações, em movimento de abertura do corpo e do espírito para a vulnerabilidade. O momento remete a trabalhos anteriores de Guadagnino, a exemplo de Suspiria, de 2018, um remake com muitos elementos de horror corporal. A partir daí, as cenas que se sucedem mostram os personagens completamente abertos, livres para tocar e, também literalmente, atravessar a pele um do outro em um misto de fascínio e perturbação. A iluminação que compõe esse episódio enfatiza uma metade do corpo de cada um deles, enquanto a outra parte fica em completo escuro, evidenciando a existência de faces ocultas nos dois, reveladas um ao outro por meio da “telepatia” fornecida pela ayahuasca.

Essa bebida costuma ser associada a rituais de autoconhecimento, de acesso ao lado oculto de si. Quando os personagens usam o alucinógeno juntos, se convidam a acessar seu espelho, entrar em seu reflexo. Contudo, conforme o efeito da ayahuasca termina, eles decidem abandonar a floresta e a droga, no que parece ser um estado de temor ao que lhes foi revelado. Na partida, Lee, ao olhar para trás, perde Allerton de vista. Os dois se separam para sempre.

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Frame do filme 'Queer', dirigido por Luca Guadagnino - Reprodução/Paris Filmes

O fim de Lee concretiza o que parece ser o um de seus maiores temores. Em uma alucinação, ele “mata” Allerton do seu coração com um tiro e acaba numa cama, envelhecendo sozinho, mas ainda pensando no calor do homem que amou.

O trabalho de Daniel Craig como Lee é, conforme as premiações da temporada já destacam, um dos pontos altos de Queer. Aqui, ele deixa a imagem do herói ultra masculino dos filmes de ação, substituindo-a pela pele de um homem vulnerável, solitário, romântico e carente, o que evidencia a versatilidade da sua atuação. Drew Starkey consegue acompanhar o ritmo de Craig, dando vida a um personagem oposto a Lee. Nessa colaboração, os dois se contrastam como luz e sombra.

A trilha sonora elaborada por Trent Reznor e Atticus Ross parece, em muitos momentos, deslocada do filme, com músicas rock dos anos 1980 e 1990. No entanto, vale um destaque para a canção original Vaster Than Empires, composta por eles e interpretada por Caetano Veloso. A composição traz frases retiradas de escritos do próprio autor do livro Queer, Burroughts.

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