Histórias que vieram para ficar: o "boom" dos doramas e K-dramas no Brasil
Espectadores e especialistas destacam a paixão, os traços culturais e os atrativos das tramas asiáticas que estão conquistando os brasileiros.
De uns tempos para cá, uma certa palavra tem caído na boca do povo.
“Ansiosa para terminar esse dorama”, diz uma pessoa da família. “Você viu esse novo dorama?”, dispara outra, do trabalho. A popularidade das séries asiáticas vem atingindo níveis nunca vistos no Brasil, e a “onda dorameira” parece estar longe do fim.
Segundo a Netflix, o consumo dessas produções no Brasil aumentou incríveis seis vezes entre 2019 e 2022, e parece se manter em alta: diversas obras asiáticas apareceram no Top 10 da plataforma em 2024, como “Hierarchy” e “Uma Família Inusitada”.
Para falar sobre essa popularização, buscamos o que estudiosos e fãs tem a dizer sobre as séries que estão conquistando o coração dos brasileiros!
Dorama: o que cabe nessa palavra?
Afinal, o que é um “dorama”? A Academia Brasileira de Letras (ABL) incluiu o termo em seu vocabulário em 2023, definindo-o como séries produzidas em países do leste e sudeste da Ásia, com idioma e elenco local.
A palavra equivale à pronúncia de “drama” em japonês, mas boa parte do público brasileiro usa o termo para obras de vários países asiáticos, diferenciando-os como “doramas japoneses” ou “doramas chineses”, por exemplo.
No país, as séries coreanas, também chamadas de K-dramas, são as mais populares. Notórias pelo romance, as histórias variam desde as mais “pé no chão” até as que utilizam elementos de fantasia ou ficção científica.
Entre os exemplos mais populares estão “Pousando no Amor” (2019) - a história de amor entre uma herdeira sul-coreana e um militar norte-coreano - e “Pretendente Surpresa” (2022) - romance entre uma funcionária e o CEO de sua empresa.
Já a Tailândia chama mais atenção em solo nacional por conta dos BLs (Boys Love) e GLs (Girls Love), histórias de amor homoafetivas, como “Bad Buddy” (2021) e "23,5" (2024), que vêm se popularizando entre o público LGBTQIAP+.
Lúcio Silva, mestre em comunicação pela UFPE e pesquisador de cultura coreana, destaca que é válido questionar o uso mais generalizado do termo “dorama”, de origem japonesa, optando por termos mais específicos como K-drama e J-drama (drama japonês).
Isso para evitar uma visão preconceituosa de que os povos asiáticos são iguais, ignorando suas diferenças culturais. Até porque, há diferenças marcantes desde o início da produção das obras no Japão, após a 2ª Guerra Mundial.
“Conteúdos produzidos pelo Japão vão enfrentar uma resistência no lugar asiático justamente pelas memórias do imperialismo japonês durante o período de guerra. São feridas que ainda estão abertas, porque o conteúdo produzido pelo Japão é essencialmente muito japonês. Ele carrega valores culturais que demonstram a identidade japonesa muito forte”, destaca o especialista.
A Coreia do Sul no pós-Guerra assume outra estratégia, reproduzindo em suas obras valores coletivos dos países do leste asiático. Lúcio aponta que é algo semelhante a como países latinos, como Brasil, Colômbia e Argentina, possuem elementos culturais comuns.
“Esse conteúdo é pensado para demarcar a Coreia do Sul como um país desenvolvido, que está disputando espaço no Mercado Global”, revela. “[O conteúdo coreano] vai se apresentar também trazendo elementos que são comuns e mais palatáveis aos consumidores”.
Esse fenômeno faz parte da hallyu, ou “onda coreana”, conjunto de esforços para expansão do poder da Coreia do Sul sobre outros países. A produção de conteúdo, que se intensificou a partir dos anos 90, também é resultado da forte influência dos EUA no território sul-coreano após a divisão das Coreias, e inclui os dramas locais e o k-pop.
Nem sempre quem consome k-dramas consome também a música local, mas há certo nível de conexão. “Tanto para o fã de k-pop o quanto para o fã da cultura popular japonesa, há essa coisa de buscar consumir a cultura do país de origem desse produto como um todo, de ir atrás de curiosidades da história do país e de outros produtos”.
Por que o Brasil assiste tantos doramas?
Segundo Lúcio Silva, elementos presentes nas produções coreanas são bastante familiares aos brasileiros, e podem ajudar a explicar o gosto do nosso país por essas histórias.
“Os k-dramas tem uma herança de certo confucionismo [tradição filosófica centrada em valores como a busca pela virtude], que é muito presente no leste asiático. São as ideias dos valores de patriarcalidade, do respeito à família, à família, a moral”, destaca. “Esses valores ressoam também com os das telenovelas, que estão presentes aqui no Brasil”.
A ideia chave, segundo estudiosos, é o melodrama, forma de contar histórias caracterizada por um certo exagero nas emoções. “[São] histórias morais, do bem vencendo o mal, do amor entre pessoas sem interesse nenhum por trás, a mocinha humilde que fica com um cara rico e não tem interesse na riqueza dele, ela realmente o ama”, exemplifica Lúcio.
A afinidade do Brasil com histórias melodramáticas, por meio das novelas, favorece o consumo das produções coreanas, cuja circulação também é auxiliada pela chegada das produções a grandes plataformas de streaming.
Em artigo sobre o tema, a pesquisadora Krystal Urbano relata que um dos primeiros momentos de consumo dos k-dramas do brasil foi por meio da atuação de fãs na internet. Os chamados fansubbers traduziam, legendavam e disponibilizavam as produções online entre o fim dos anos 90 e começo dos anos 2000.
O consumo de conteúdo desse tipo acaba por se tornar mais abrangente com a chegada de produções japonesas e sul-coreanas ao catálogo brasileiro da Netflix, que ocorreu antes mesmo da chegada do streaming no Japão e da Coreia, entre 2015 e 2016.
Ao lado de plataformas como o Viki, a Netflix é uma das principais formas de circulação das obras no Brasil. Foi a partir dela que um público menos letrado em internet pôde ter acesso. “Pensando no fundo mais doméstico, donas de casa, pessoas de maior idade, a Netflix é um aparelho talvez mais fácil de utilizar”, destaca Lúcio.
Tramas que viraram paixão
Nos últimos anos, as séries asiáticas vêm conquistando quem nunca tinha tido contato com esse tipo de obra. É o caso da assistente administrativa Joseli Moraes, de 48 anos, que assistiu seu primeiro k-drama após insistência de uma amiga.
Após dar play - mais por amor à colega do que por interesse na obra - logo se viu, como ela mesmo diz, sem palavras. “Nada se parece com os doramas. São únicos, especiais, e extremamente bem feitos, com atores super preparados. Eu nunca saí de Hollywood até conhecer os doramas”, revela.
O nome do primeiro k-drama assistido por Joseli se perdeu na memória, à medida que assistia mais e mais obras. Hoje, é uma fiel consumidora, em especial de produções coreanas românticas. “Uma Noite de Primavera” (2019), sua favorita, já foi assistida cinco vezes, e foi parar até mesmo na decoração do bolo de aniversário de sua irmã, feito por ela.
Como é comum entre os espectadores das produções asiáticas, Joseli criou uma afeição especial por um dos astros: o ator Jung Hae-in, estrela de sua tão amada “Uma Noite de Primavera” e de produções como “Snowdrop” (2021) e “Enquanto Você Dormia” (2017).
“Eu tenho figurinhas dele, coloco figuras dele em qualquer paisagem e mando para as pessoas [nas redes sociais] com bom dia, boa tarde, boa noite”, destaca Joseli. “Tem uma [série] em que ele é policial, do exército, e eu não assisti porque não quero ver ele sofrer”, relata.
Outro motivo para seu encantamento com k-dramas são os valores que enxerga nas obras. “Eles [as pessoas asiáticas retratadas nas séries] dão muito valor à família, os mais velhos tem poder de decisão, os filhos sentem necessidade de ter aprovação dos pais nos seus relacionamentos”.
As produções também conquistaram a aposentada Vânia Falcão, de 70 anos. “Tem muitos artistas bons, não é só pela beleza ou físico. Porque na cultura deles, eles se empenham em dar o seu melhor na interpretação e passam uma emoção que parece real”, aponta.
Sucessos como “Uma Advogada Extraordinária” (2022) e “Nosso Eterno Verão” (2021), disponíveis na Netflix, figuram em sua lista de favoritas, que ela diz possuir tantas obras que é até difícil enumerá-las. “Cada uma passa exemplos diversificados, lindas histórias que você perde até a noção do tempo”, revela.
Ainda que considere as produções sul-coreanas mais elaboradas, Vânia também teve contato com séries de países como Tailândia, Japão e China. Em uma demonstração do apelo das obras com as mais diversas faixas etárias, quem também se aventura pelos dramas de diferentes países é a bacharela em Direito Morgana Santos, de 24 anos.
“Posso dizer que sou um pouco velha quanto ao conhecimento da cultura de filmes e séries asiáticas. Comecei a assistir dorama por conta do grupo de k-pop Super Junior, em 2015”, destaca. Ela conta que assistir às produções era um tanto trabalhoso há alguns anos, mas vem se tornando mais fácil devido à disponibilidade em plataformas como a Netflix.
Para Morgana, as obras possuem diferenciais em relação a novelas brasileiras, e parte de seu atrativo reside nisso. “Sinto que deixamos de produzir novelas inovadoras, todas giram em torno da mesma trama - traição, roubo e terras - e se torna um pouco cansativo assistir as mesmas coisas todas às vezes”.
O pai da jovem também é “dorameiro”, e ambos participam de grupos no Facebook sobre o tema. A forte presença online dos fãs é uma característica do gênero no Brasil. Um grupo no Facebook intitulado “Doramas na Netflix”, já conta com mais de 191 mil membros. Outros dois grupos de fãs já acumulam, juntos, mais de 572 mil membros.
É também na internet que têm surgido algumas polêmicas sobre o consumo das produções asiáticas. Uma das questões levantadas é se as séries não criam uma visão idealizada dos países do leste asiático, em especial, da Coreia do Sul.
Para Lúcio Silva, de fato, há um certo nível de idealização nos K-dramas. “Esses conteúdos valorizam a identidade sul-coreana. São, sim, produtos que são pensados para vender a Coreia do Sul, não como um país perfeito, mas como um país que é tudo de bom. Moderno, que não tem crime, onde o bem vence o mal, que não tem nada de errado.”
“A onda coreana é projeto de poder. É uma política econômica e cultural da Coreia do Sul, tanto que as indústrias da produção e conteúdo vão receber incentivos fiscais do governo sul-coreano”, completa.
“Dizem que é tudo fantasia, que é para vender um país e uma cultura que não existem. Eu não quero saber se eles são assim na real. Eu quero saber que eles me transportam para um universo onde o amor ainda existe”, comenta Joseli sobre seus k-dramas. “São tantas coisas boas quando eu estou muito estressada, eu coloco ‘Uma Noite de Primavera’ só para ver Jung-hae e me acalmar”, completa.
Há muito o que se discutir sobre a ascensão dos doramas, k-dramas e séries asiáticas. As pesquisas acadêmicas ainda têm muito o que analisar sobre o impacto cultural desse fenômeno tão “jovem” em solo nacional. O certo é que essas histórias que vieram para ficar e ainda têm capítulos a perder de vista.